domingo, 10 de maio de 2009

SEGUNDA(S) FAMÍLIA(S)

Quero falar de uma coisa especial, algo muito marcante na minha infância: o que eu considero a segunda família que tive. Trata-se da família de meus tios – irmã de minha mãe e seu marido – e a sua filha, um pouco mais nova do que eu. Analisando hoje, como adulta, penso que minha infância não deve ter sido uma coisa muito fácil. Meu pai era operário, acordava às cinco da manhã e ia embora para o trabalho com sua marmita debaixo do braço, voltando somente à noitinha. Ele não tinha muito tempo para nós, mas o pouco que pudemos conviver nesse período e também mais tarde, depois de sua aposentadoria, foi algo extremamente marcante. Isso merece um texto à parte, pois meu pai era uma pessoa muito especial e poucos devem ter conhecido ou percebido sua verdadeira essência, pois ele era uma pessoa muito calada e discreta. Enfim, o salário era pouco, tínhamos o essencial para viver dignamente, mas só o essencial, sem que fosse permitida qualquer extravagância, qualquer compra fora do Natal (graças ao 13º salário), qualquer refeição fora de casa. Minha mãe não se conformava muito com a situação, sofria com tudo isso, mas, apesar das dificuldades, morávamos na casa de nossos avós maternos, por isso nunca nos faltou um lugar decente e gostoso para viver. O bairro era bom, os vizinhos ótimos, a escola pública próxima de casa era excelente e nossa casa era grande e tinha um quintal enorme. Também nunca nos faltou comida; tudo simples, mas tudo bom e saudável e meu avô sempre estava ali para ajudar no que quer que fosse necessário e importante (o nosso pediatra particular, por exemplo). Minha mãe sentia-se com o orgulho ferido e, além de nunca ter aceitado ajuda alguma de meu avô, ainda o culpava por não ter permitido que ela tivesse estudado além do primário e acabava sendo intolerante e impaciente com ele, o que gerava muitas discussões que nós, crianças, éramos obrigadas a assistir. Além disso, meu avô implicava com a minha avó o tempo todo e eles também criavam situações de tensão.

Parece um cenário extremamente complicado, que poderia ter deixado marcas negativas em qualquer criança. Mas não foi. Quando penso na minha infância com o coração e não com a razão, só tenho lembranças daquilo que foi bom, de tudo de bom que nos ensinaram, de como nos amaram e nos ensinaram a amar. Sei que minhas três irmãs sentem o mesmo e a prova disso é que nos damos muito bem, nos amamos muito e nos respeitamos, graças a tudo aquilo que nos foi ensinado, graças aos valores que nos foram transmitidos, independentemente de qualquer atrito ou situação difícil pelas quais eles tenham passado e das quais, penso, ninguém está livre. Minha infância foi agradável, no fim das contas: eu morava em um bairro de imigrantes, que por si só já funciona como uma grande família e o que mais me foi ensinado nesse ambiente, foi a solidariedade. Eu tinha muitos amigos, brincava livre na rua até a hora que quisesse, ia a pé para a escola, ia sozinha à casa de amigos, ia a pé ao cinema, à padaria, à doceira, o que nos dava uma sensação de liberdade que não conseguimos dar a nossos filhos hoje. Portanto, acho que posso me sentir uma pessoa que teve uma infância bastante privilegiada, embora simples, pois eu tinha várias figuras adultas ao meu redor além de meus pais: dentro de casa, meus avós; na rua, vários outros avós que se sentavam com suas cadeiras nas respectivas portas das casas e tomavam conta das crianças que brincavam na rua.

Mas quero falar de outras figuras adultas que marcaram muito a minha infância e que foram como verdadeiros pais: meus tios. Era comum, desde pequena, eu ir para a casa deles e ficar por lá alguns dias, nos fins-de-semana ou nas férias. O domingo era especialmente gostoso, porque a gente ia passar o dia no clube e eu sempre adorei isso (algo que faço até hoje). Minha tia fazia uma cesta cheia de sanduíches e frutas e a gente ficava no clube até à noitinha. Eu me divertia muito, pois sempre gostei da vida ao ar livre, de natureza e de esportes. Além disso, eles me levavam para sua casa de campo, na montanha, lugar que eu amava e ainda amo e para onde eu acabava indo muitas vezes ao ano. A gente ia pelo menos uma vez por mês para lá, em determinada época e, nas férias de verão, chegávamos a ficar quase dois meses direto. No caminho para lá, que durava de três a quatro horas por uma estrada cheia de curvas intermináveis, eu me lembro que ia cantando todo o repertório que eu conhecia. E o incrível era que meus tios não me mandavam calar a boca! Talvez eles não tivessem idéia do quanto aquilo tudo era importante para mim. Eu morava numa casa cheia de gente, com os pais, três irmãs e os avós. Dividia meu quarto com três irmãs e sofria, porque era muito menos bagunceira do que elas e nunca conseguia ter as coisas do meu jeito. Na casa dos meus tios, eu encontrava um mundo alternativo, uma família alternativa, uma outra experiência: eu tinha uma prima com quem brincar, que era tão levada quanto eu, e adultos que eram bem mais tolerantes que meus pais com as nossas travessuras; lá eu tinha uma estante repleta de livros para escolher e eu amava ler tanto quanto brincar de bola ou andar de bicicleta. Quando eu não estava brincando, pegava um livro e passava horas devorando-o. Lembro-me que minha prima tinha uma malinha de metal (uma antiga lancheira) cheia de carrinhos coloridos e que a gente virava o quarto de brinquedos de pernas para o ar: mexia em tudo, mudava os móveis de lugar, fazia cabaninhas de lençóis. Era um quarto próprio para brincar, por isso a gente podia ter mais liberdade de fazer uma certa bagunça inocente. Não que viver na minha casa não fosse bom, ao lado da minha família. Claro que era (como já disse no início e que vai merecer um texto à parte), quando eu ficava longe, tinha muita saudade da minha casa, mas isto era algo mais, uma experiência diferente e, que por isso, era divertida. A gente ficava conversando até tarde na cama, contando histórias, contando piadas ou lendo gibis. Tinha um piano na sala, que a gente (eu, pelo menos) achava que tocava. Eram algumas melodias, apenas, mas repetidas à exaustão. Isso devia deixar a vizinha maluca, mas eu tocava o meu repertório de três ou quatro musiquinhas (incluindo, é claro, “O Bife”) até cansar.

Minha tia era bem menos severa do que minha mãe; eu não me esqueço, por exemplo, de uma vez em que ela me ensinou e deixou que eu fizesse bolinhos de arroz sozinha, numa idade em que minha mãe não permitia nem que eu chegasse perto do fogão. Eu gostava da rotina da casa da minha tia, do perfume gostoso que aquela casa sempre tinha (até hoje não descobri como ela consegue, mas sua casa é sempre perfumada), de ir à feira com ela em um bairro diferente do meu (embora deva ressaltar que também adorava ir à feira com a minha mãe, adorava ajudar a fazer as compras, a puxar o carrinho, me sentir útil, enfim). Além de tudo, o meu tio parecia gostar muito de mim e eu gostava de conviver com ele, um siciliano de raciocínio rápido, uma pessoa perspicaz e inteligente. Ele era engraçadíssimo quando contava casos e piadas; era extremamente falante e adorava conversar comigo. Estimulava meu gosto pela leitura, me ensinava truques de cartas, conhecia todos os enigmas lógicos do livro “O homem que calculava” de Malba Tahan e adorava me desafiar a encontrar as respostas. E eu gostava disso. Meu tio gostava da minha energia, da minha disposição para a leitura e para aprender. Ele também era uma pessoa “energética”. Como bom siciliano e fazendo jus à fama que a eles é atribuída, tinha suas explosões e aí o melhor a se fazer era sair de perto. Muita gente tinha medo dele nessas horas, mas eu nunca tive, pois conhecia a pessoa que estava por trás daquela tempestade e sabia que aquilo passava rapidamente. Infelizmente ele já se foi, mas minha tia e minha prima ainda estão aqui para que eu possa lhes contar como eles foram importantes na minha infância.

Ainda hoje, muitos perfumes que sinto me fazem lembrar da casa de minha tia e da vida paralela que vivi ali. Às vezes eu abria o guarda-roupa só para sentir o cheiro gostoso que saia dali de dentro. Quando sinto um perfume que me lembra daquele da infância, tento descobrir o que é, para resgatar o cheiro, mas até hoje não consegui descobrir exatamente o que era: o que mais se aproximou, foi o de flores de laranjeira. Mas pode ser limão, jasmim... Até hoje não sei se ela perfumava as gavetas com sabonete, mas me lembro bem do sabonete “Regina”, quadradinho e branquinho, com um desenho em preto e branco da Catedral de Milão na embalagem. Consigo sentir seu cheiro de memória, mas nunca consegui encontrar nada igual a ele para reavivar com esse sentido aquela fase da minha vida. Lembro-me que quando eu freqüentava a piscina da prefeitura perto de casa, por volta dos 4 anos de idade, era esse o sabonete que eu levava. Como seria bom se eu encontrasse algo com aquele “cheiro de infância” hoje! Não me canso de procurar.

Lembrando de brincar com minha prima, lembrei-me de outra casa de pessoas da família que freqüentei muito e que também marcou minha infância. O irmão de minha mãe morava com sua esposa e dois filhos, como idades regulando com a minha, na mesma rua, numa pequena vila. E eu ia muito à casa deles também e encontrava lá muitas coisas que não tinha em casa. Minha tia, neste caso, também era bem mais tolerante do que minha mãe com as bagunças infantis. Coisas que me lembro desse tempo: molhar o quintal de cimento queimado, encher de sabão e ficar escorregando de barriga, brincar de autorama, de boneca que trocava roupinhas (a precursora da Barbie), comer biscoito de polvilho quentinho, saído do forno da fábrica logo ali na esquina, comer pão fresquinho com mortadela e guaraná Antarctica de garrafinha verde e ouvir muita música na vitrola que ficava debaixo da escada, principalmente Beatles, por quem minha prima era absolutamente apaixonada. Ela tinha todos os discos e também posters na parede do quarto (o que era moda nessa época). Meu tio comprava muitos discos e a gente ouvia muita música. Era super divertido. Hoje sei que era música da melhor qualidade, mas eu nem sabia avaliar muito isso na época. Eua apenas gostava de ouvir.

Na verdade, parece que a gente tinha, naquela época, um núcleo familiar principal e vários outros que também contribuíam para a nossa formação. As pessoas moravam relativamente perto, se visitavam, as crianças tinham certa liberdade para andar sozinhas, para ir à casa de tios, de avós, de amiguinhos do bairro. Não sei se as crianças de hoje têm esse privilégio, mas eu tive e dou a isso um enorme valor. Espero que essas pessoas que marcaram tanto essa fase da minha vida saibam como foram importantes para mim e o quanto eu sou grata por terem me proporcionado essa felicidade, essa infância tão gostosa!

© Direitos Reservados

Proibida a reprodução total ou parcial sem prévio consentimento da autora.

Escrito e publicado por Christine Jz.