sábado, 13 de dezembro de 2008

A MAGIA DA MÚSICA

Minha relação com a música começou muito cedo; arrisco dizer que ainda na barriga de minha mãe. Ela amava a música, cantava muito, o dia todo, enquanto cuidava dos afazeres domésticos ou costurava. Era afinadíssima e tinha uma voz linda. Quando ouvia rádio, acompanhava as músicas, sempre cantando junto. Certamente eu fui me desenvolvendo dentro da sua barriga embalada por essa música ouvida "direto da fonte". 

Eu me lembro de bem pequena ficar muitas vezes sentada na porta da cozinha, onde batia o gostoso solzinho da manhã, ouvindo minha mãe cantar enquanto cozinhava. São essas pequenas coisas que ficam gravadas na nossa memória e que nos trazem um calor gostoso ao coração. Meu pai também cantava, mas de um jeito bem diferente: ele cantava baixinho, músicas bem suaves e era também muito afinado.  Lembro-me dele cantando “A deusa da minha rua” e “Chão de estrelas” e me lembro de como ficava fascinada toda vez que ele chegava naquela parte: “...e a lua furando nosso zinco, salpicava de estrelas nosso chão”. Eu imaginava as luzinhas prateadas no chão e achava aquilo lindo! Meu avô, não sei se cantava, mas sei que ele tocava em uma banda de jazz. 

E assim, eu nasci ouvindo música e gostando. Tenho certeza de que fui muitas vezes embalada pela voz da minha mãe quando bebê e consigo lembrar de minha mãe me dando comida na boca e cantando. Nem consigo me lembrar quando foi que me dei conta, mas tenho a impressão de que desde sempre gostei de ouvir música; uma música tranqüila, uma música que me trazia conforto e me fazia um enorme bem. O que de mais antigo consigo me lembrar é que eu tinha uns quatro anos de idade e guardava de memória a letra inteira de muitas músicas e adorava ficar cantando aquilo tudo o tempo todo. Tão logo eu aprendi a escrever (o que foi pouco depois, assim que completei cinco anos) tratei de pegar um caderno e escrever todas as letras das músicas que eu gostava de cantar, para não esquecer de nenhuma. Fui fazendo um “repertório” incrível: não faltava nenhuma música dos festivais (Edu Lobo, Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano) e as do “Fino da Bossa”, com a Elis. Fui anotando músicas e mais músicas durante anos.  Munida do meu caderno “mágico”, eu pegava um cabo de vassoura para fazer de microfone e, para deleite ou dissabor (sei lá, nunca fiz uma pesquisa a esse respeito...) dos vizinhos, ia para o quintal e cantava as músicas todas, o caderno inteiro, do começo ao fim. Era um caderno brochura, encapado com plástico cor-de-rosa leitoso… nunca vou me esquecer. Meus tios (muito queridos) sempre me levavam com eles para Campos do Jordão e adivinhe… muitas vezes eu sacrificava os ouvidos deles cantando ao longo de todo o caminho. Naquele tempo a viagem demorava de quatro a cinco horas. 

Não sei se eles sofriam (nunca me falaram), mas acho que não era tão terrível a ponto de incomodar, porque senão meu tio siciliano e muito sincero certamente teria deixado isso claro. Mas ele até me pedia para cantar algumas músicas que ele sabia que faziam parte do meu “repertório”.  E a minha prima, um pouco mais nova do que eu e companheira de traquinagens, também nunca reclamou. Ah! Eu tive também uns “surtos de baterista” no quintal, batendo em baldes e latas de leite em pó, mas, para alegria e alívio da vizinhança, isso durou pouco. A carreira de baterista-mirim não foi adiante…

 Eu fui crescendo e, para minha felicidade, na minha rua morava uma menina que era tão apaixonada pela música quanto eu. E a música nos uniu numa amizade que perdura até os dias de hoje, apesar da distância que nos separa. Nós tínhamos três anos quando nos conhecemos. A família dela, super musical, tinha festas de aniversário animadíssimas, sempre com as pessoas cantando muito e tocando violão. E eu adorava aquilo tudo! E nós adorávamos cantar juntas. Tínhamos o mesmo gosto, cantávamos a duas vozes, ela tocava violão e gravávamos as nossas “performances” em um gravador cassete, última novidade do momento! Ficávamos horas e horas nessas nossas “jam sessions” infantis. 

Quando estávamos com cerca de nove anos de idade, consegui um violão emprestado de um tio (quebrado, mas meu pai consertou e ficou parecendo novo) e ela me ensinou os primeiros acordes. Tudo bem, não dava pra tocar bossa-nova, mas ela me ensinou umas músicas mais simples, de dois ou três acordes, Jovem Guarda. Ela também tocava piano, então passamos a elaborar nossas gravações com piano e violão, além das vozes. Era muito divertido. As gravações saíam péssimas, mas a gente adorava! Como nós gostávamos daquilo tudo! 

Quando não estávamos juntas, eu ficava em casa ouvindo música deitada no chão da sala, na frente da “vitrola”. Eu grudava o ouvido no alto-falante, queria ouvir cada nota da melodia, cada acorde. Eu ouvia Bossa Nova, achava incrível cantar aquelas coisas complicadas, difíceis. Eu não entendia por que eram mais difíceis do que a Jovem Guarda, só sei que gostava muito. Era um desafio ouvir aquelas melodias e depois reproduzir tudo igualzinho, sem desafinar. Quanto mais complicada a melodia, mais eu gostava de cantar. Quando eu ouvia as músicas, fechava os olhos e viajava para um mundo distante. Não raro, começava a chorar. Não era de tristeza, não sei explicar o que era (ou o que é, pois ainda sinto isso), mas uma forma de felicidade, de libertação da dureza da vida real. 

A música tem esse dom de me transportar, de fazer aflorar sentimentos, de trazer boas lembranças e me fazer imaginar projetos e sonhos sendo realizados. Pelo menos para mim é assim. Além da Bossa Nova, descobri recentemente porque eu gosto tanto de Jazz e porque aquilo me parece tão familiar. Um outro tio morava perto da minha casa e eu sempre ia lá para brincar com meus primos, de idades próximas à minha. Eles tinham uma vitrola muito boa e muitos discos. Ouvíamos sempre os Beatles (que minha prima amava e tinha absolutamente tudo deles) e também os discos do meu tio: Ella Fitzgerald, Louis Armstrong, Billy Holliday, Sarah Vaugh… Meu tio tinha um tremendo bom gosto para a música e aquilo também foi entrando na minha cabeça, assim meio por “osmose”. Bem, eu e minha amiga até fomos estudar violão juntas, por volta dos quinze anos, mas nossa felicidade durou pouco. Apenas uns seis meses. Ela se mudou para longe e nós fomos obrigadas a nos afastar. Coisas da vida... E a tal vida foi tomando novos rumos, tanto para mim quanto para ela. Eu fui para a faculdade, para realizar outro sonho: ser cientista, estudar a natureza. E a música foi ficando relegada a um segundo plano, o violão ficou anos e anos encostado a um canto, mudo, mudo, 'tadinho...

 Só muitos anos depois (muitos anos mesmo...décadas…) eu voltei a estudar violão. Já adulta, com filhos crescidos e depois de ter trabalhado vinte anos com algo que nada tinha a ver com a música eu, finalmente, consegui realizar o velho sonho de estudar violão. Tive a sorte de conhecer dois profissionais extremamente competentes, músicos de primeiríssima qualidade, que me ensinaram tudo o que sei (primeiro um, depois outro). 

Durante vários anos, pude aprender muito com eles e sou grata por tudo o que eles conseguiram me ensinar, pois isso trouxe muita coisa boa para a minha vida: a realização de um sonho e a possibilidade de inserir nela muito mais música. Só parei de estudar porque tive que dar lugar a novos projetos e, infelizmente, não consigo fazer tantas coisas ao mesmo tempo. Mas o mais importante foi ter conseguido trazer de volta a música para a minha vida, depois de tantos anos. Foi uma das melhores coisas que tomei a decisão de fazer. Também fui cantar: primeiro em uma escola de canto popular, depois em um coral, aprendendo canto erudito. Lá estudei mais música, tive professores de técnica vocal realmente incríveis, tanto no âmbito profissional quanto no pessoal, que fizeram de tudo para que eu pudesse educar a minha voz. Passei momentos incríveis e emocionantes nos ensaios e nas apresentações, mergulhada num mar de música. 

Conheci pessoas maravilhosas, verdadeiros amigos que me ensinaram a amar ainda mais a música (e eu nem achava que isso seria possível!). Passei a entender aquelas coisas que eu já apreciava, mesmo sem saber muito bem por que. Outras, eu continuo não entendendo. Ainda bem, pois essa é a parte incrível da música: de ser uma forma de arte que não precisa ser entendida para ser apreciada (os músicos que não se ofendam, pelo contrário, o que quero dizer é que a música tem uma magia que faz a gente ouvir e gostar de alguma coisa só pela sensação que aquilo nos causa. Entender é importante, mas não é preciso entender para sentir). Pois bem, é claro que com a minha idade não vou me tornar uma cantora profissional ou uma instrumentista (não nego que cheguei a sonhar com isso, mas sonhar não é proibido...) mas o fato de transitar por esse mundo da música já me fez um bem enorme. 

De uma forma ou de outra, a música sempre fez e sempre fará parte da minha vida e eu sempre vou cantar e tocar violão, mesmo que só para mim mesma, por puro prazer. Hoje, quando encontro minha amiga de tantos anos, aquela que me ensinou os primeiros acordes e com quem eu fiz o primeiro “dueto” da minha vida, nós ainda cantamos e tocamos violão, esquecendo das agruras do mundo, como se tudo se resumisse àqueles momentos mágicos que a música nos proporciona.



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Escrito e publicado por Christine Jz.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

POR QUE ESCREVER?

Certo dia percebi que não era eterna e tive medo de não conseguir dizer a meus filhos tudo o que pretendia dizer. Tentando deixar algo que eles pudessem ler no futuro, comecei a registrar meus sentimentos e minha visão de mundo. O tempo foi passando, muitas coisas foram acontecendo, eu fui registrando e isso acabou se tornando um hábito. Mais do que isso - passou a ser a minha forma de desabafo. Toda vez que eu sentia uma emoção forte, de alegria ou de dor, eu registrava no meu caderno. Então pensei: "O que é isto, afinal? Um diário? Uma biografia? 

Biografias são reservadas a pessoas famosas que, com seus feitos, mudam a história do mundo. Mas eu não passo de uma pessoa comum, igual a milhares de tantas outras. Para que escrever tudo isto?”Mas eu não conseguia parar de escrever, até que um dia pensei: “Mas por que a vida de uma pessoa comum não pode ser interessante? Seus sentimentos e suas emoções podem ser compartilhados com as pessoas comuns que, como ela, não se tornaram famosas fazendo algo diferente, mas que ainda assim podem ver parte de suas próprias vidas nesses depoimentos e se identificar com suas vivências.”Estamos cansados de ler e ouvir falar de heróis que realizaram grandes feitos e dos quais estamos tão distantes. Sentimo-nos pequenos, como se nossas vidas também não tivessem um brilho especial, não fossem úteis, lindas ou importantes.  

No entanto, cada um de nós é importante e cada momento de nossas vidas é importantíssimo para nós e para todos aqueles que compartilham conosco espaço e tempo, este planeta e esta época. Outra razão que me fez continuar a escrever foi o imenso prazer que essa atividade me proporcionava. Isso ficou ainda melhor quando comecei a me lembrar de pessoas e fatos que tinham marcado a minha infância, minha juventude e também minha vida adulta. Lembrar de tudo que já passei, das pessoas queridas que sempre tive ao meu lado, me fez um bem enorme ao coração, além de me dar a oportunidade de mostras às  pessoas que têm me acompanhado ao longo da minha vida o quanto cada uma delas foi e é importante para mim. Tudo o que eu registro aqui é uma homenagem a essas pessoas queridas que fazem parte da minha vida e a todas as pessoas comuns, com eu. Somos maioria! E viva a vida de cada um de nós!

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Escrito e publicado por Christine Jz.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

PEQUENOS PROFESSORES

Renato despertou sobressaltado. Havia muito, ele se sentia deprimido e infeliz e nada o fazia ter vontade de viver. A vida havia lhe reservado muitos dissabores, levando cedo demais aqueles a quem ele mais amava. Ele sofria sua ausência e agora eles estavam ali, tão presentes, num sonho longo do qual ele despertava agora. Por alguns momentos ele teve sérias dúvidas; aquilo tudo parecia tão real e presente, não poderia ter sido só um sonho. Eles estavam todos ali, reunidos e o abraçavam de uma forma tão terna que ele ainda podia sentir o calor do abraço. Ele guardava ainda meio zonzo a sensação do intenso amor que brotou de seu peito naquela hora, quando se abraçaram. Eles o beijavam calmamente na face, seus rostos eram luminosos e serenos. 

Renato não cansava de repetir que sentia muita saudade e eles diziam que também sentiam, pois o amor que os ligava era muito grande. Ele quase podia sentir o calor de seus corpos e trazia ainda fresco na memória o sorriso manso de cada um deles: a paz que ele sentia era infinita, o prazer indescritível. Ele estava ainda extasiado por aquela deliciosa sensação quando se lembrou que eles lhe diziam que estavam bem, mas que apenas uma pequena coisa os desagradava: vê-lo sofrer tanto pela sua ausência. Lembre-se – diziam – que você vive e ainda restam ao seu lado muitos que merecem pelo menos uma parte de todo esse amor que nós sabemos que você é capaz de oferecer, pois já pudemos senti-lo.

Ele respirou fundo, encheu o peito, levantou-se e, com o corpo reto e cheio de uma dignidade e de uma altivez que já não vinha experimentando há muito tempo, caminhou até o banheiro e encarou sua imagem no espelho. O homem que ele viu não foi o mesmo dos dias anteriores. Uma nova luz brotava de seus olhos, agora iluminados e transformados pela sensação que ele trazia daquele encontro. Algo nele havia mudado, e muito. Ele barbeou-se, vestiu-se com apuro e foi para o trabalho, ansioso por encontrar alguém para quem pudesse contar a experiência. Ele se sentia feliz, uma sensação que quase já nem lembrava mais como era.

Quando Renato ia chegando à porta de sua empresa, algo ofuscou aquele seu estado de felicidade momentânea. Ele viu um grupo de pessoas reunidas na calçada, consternadas, e quis saber o que estava acontecendo. Um de seus funcionários lhe apontou uma criança do outro lado da rua, uma criança da vizinhança, que ele conhecia, mas que nunca havia lhe despertado o interesse. Aquela criança estava órfã, totalmente só no mundo. Ela, seus pais e dois irmãos tinham sofrido um acidente, do qual apenas ela tinha sobrevivido. Sem qualquer outro parente que tivesse restado, ela estava sendo agora encaminhada para uma instituição. Ele ficou sem entender os desígnios do céu: por que, afinal, justamente no dia em que ele reencontrava um pouco da sua felicidade perdida, deparava-se com tamanho sofrimento, por parte de alguém tão pequeno que talvez não tivesse ombros para suportá-lo?

Algum tempo se passou e aquilo não saiu da cabeça de Renato. Quando o Natal se aproximou, ele quis saber para onde aquela criança órfã tinha sido encaminhada. Sem saber muito bem por que, Renato resolveu lhe fazer uma visita para levar um presente de Natal que talvez pudesse colocar novamente um sorriso em seu rosto, que talvez pudesse fazê-la esquecer por um momento que estava tão só no mundo. Afinal, ele sabia o que era se sentir só. Ao chegar lá, encontrou não só o par de olhinhos que ele procurava, mas dezenas de pares de olhinhos esperançosos de que alguém tivesse se lembrado delas no Natal. Ele não teve dúvidas: voltou lá mais uma vez com presentes para todas as crianças e a partir de então passou a visitá-las regularmente, encontrando nelas um destino para o seu amor que, durante tanto tempo, tinha ficado adormecido.

Ele conversava com as crianças e com as pessoas que cuidavam delas e foi assim que ficou conhecendo muitas histórias difíceis. Mas ele também via em todos aqueles rostos uma semente de esperança, apesar de todo o sofrimento. Aqueles pequenos eram lutadores incansáveis e não desistiam jamais. Muitas vezes teve a felicidade de ver crianças que saíam dali felizes, tendo seus sonhos concretizados, conseguindo uma nova família. E ele percebeu e aprendeu que elas não apenas ganhavam a felicidade de ter um novo lar, como também levavam a felicidade para pais que desejavam muito ter filhos, que tinham muito amor a oferecer.

Renato descobriu naquelas crianças a força de gente que tinha todas as razões do mundo para chorar, mas que ainda assim, sorria. E descobriu que o ato de sorrir mudava tudo, que a esperança as impelia a viver. E ali ele passou a distribuir o seu amor, entendendo através desses pequenos grandes professores sorridentes que o nosso amor não precisa ser destinado apenas àqueles que se ligam a nós por laços de sangue, mas também pode se estender a todos os que estão ligados a nós por laços de vida. Ele descobriu que se olharmos à nossa volta, veremos que há muita gente que necessita desse amor e dessa atenção. Sua vida mudou. Ele sabia que agora fazia felizes aqueles que estavam aqui neste mundo e também aqueles que haviam partido. Entendeu finalmente a razão da visita de seus entes queridos naquela noite, pedindo que ele não chorasse a sua ausência e não se esquecesse de que ainda havia muita gente por aqui que precisava do seu amor.

Hoje, a cada novo dia, ele agradece por estar vivo e por ter a chance de fazer felizes aquelas pessoas. Ele se vê no espelho e olha com orgulho para seus olhos ali refletidos, hoje luminosos. Ele sente que sua vida vale muito e que ele pode fazer a diferença. Ele sabe que ali, diante dele, está alguém capaz de mudar a vida de muita gente, de fazer o bem a outras pessoas, apenas pelo fato de estar vivo.

Este texto é dedicado a um amigo que perdeu seus entes queridos e que buscou durante muito tempo uma razão para viver... 

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Escrito e publicado por Christine Jz.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

E ASSIM CHEGUEI AO MUNDO...

Poderia ter sido um dia como outro qualquer. Mas não foi... Aquela moça grávida de oito meses estava cansada. Tinha arrastado móveis para ajeitar o quarto e dar lugar ao novo bebê que deveria chegar dentro de umas duas semanas. Claro que o marido tinha tentado evitar, dizendo que ainda tinha tempo pra fazer isso com calma. Aliás, ele era a calma em pessoa. Mas ela era teimosa e quando decidia fazer algo, ninguém a segurava. E assim fez: com a ajuda resignada do marido, mudou todos os móveis do quarto de lugar. 

Terminada a tarefa, ela foi se deitar, mas não conseguiu dormir. Uma dorzinha leve começou a incomodá-la. Nada que a fizesse sofrer ou imaginar que algo não estivesse bem com o bebê, mas a dorzinha não passava. O marido não tinha demorado a desmaiar e, ao seu lado, já dormia um sono pesado, cansado do trabalho na fábrica. A filha mais velha, pouco mais que um bebê, dormia no berço ao lado. Mas a tal dorzinha não passava; uma pequena cólica, ela dizia. Cutucou o marido e pediu que ele a levasse ao pronto-socorro. 

Ele resmungou algumas palavras ininteligíveis mas, como conhecia aquela jovem que jamais desistia, levantou-se, vestiu a primeira roupa que encontrou e, sem conseguir ainda raciocinar direito por conta do sono, foi para a rua procurar um taxi. Antes disso, tocou a campainha da casa vizinha e chamou a mãe dela, que morava bem ali ao lado. Esta, ao chegar lá e perceber que a criança podia estar prestes a nascer, fez o óbvio: correu para a sua casa, para acender uma vela e rezar... Só mesmo a Dona Nenê! A moça ficou só, com um bebê no berço e outro na barriga, este último doidinho pra ver como era o mundo lá fora. Era um sábado, onze horas da noite e a rua estava deserta. Nenhum carro, muito menos um taxi. Assim, meia hora depois de esperar e não ter sucesso algum, o rapaz resolveu voltar para casa e dizer à esposa que esperasse até o dia seguinte, que afinal não devia ser nada mesmo. E assim fez. Ao entrar no quarto, o que viu foi uma cena que ele jamais esqueceu... Sua esposa tinha sobre o peito um bebê que dormia calmamente, ainda ligado ao cordão umbilical. Ela só lhe disse: "tive vontade de fazer uma forcinha... e ela simplesmente nasceu!". Nesse momento, a avó da criança, que já tinha acendido a tal vela, voltava para ver "como estavam as coisas". Ao ver que a criança já tinha nascido sem ajuda alguma, olhou para o bebê e disse a célebre frase que a família jamais esqueceria: "O que é que a gente faz com isso agora?" Pois é, foi essa a primeira denominação que a criança recebeu, mal saída da barriga da corajosa mãe. 

De forma um tanto apressada, há que se reconhecer, mas bem que ela poderia ter tido uma recepção mais calorosa por parte da vovó. Já adulta, ela se divertia e ria junto com a avó toda vez que a história era contada e recontada. Até a mãe conseguiu rir naquele momento, pela inusitada reação da avó diante da situação. Já nascida a criança, chamaram o pronto-socorro e foram acordar uma vizinha que era parteira. Pode-se perguntar: por que será que eles não fizerem isso antes de mais nada, em vez de tentar achar um taxi? A verdade é que o pai não devia realmente achar que era algo tão urgente e muito menos que a criança poderia nascer tão antes do prazo previsto. 

E o bebê? Ela, uma menina com esparsos fiozinhos de cabelo (para não dizer carequinha) não estava nem aí... O cordão umbilical só foi cortado cerca de 15 minutos depois de nascida e já não pulsava mais. O tempo de espera se passou ali, junto ao corpo da mãe, na tranquilidade do quarto, no escurinho silencioso daquela noite de sábado. Cortado o cordão, a parteira deu o primeiro banho, vestiu uma roupinha bem bonitinha e colocou a recém-nascida no berço... da irmã mais velha. Aliás, a irmã nunca se conformou por ter sido desalojada no meio da noite, para dar lugar àquele pequeno serzinho intrometido que foi chegando assim sem avisar, com uma pressa tão grande que nem deixou a mãe sair de casa, que nem permitiu que comprassem uma caminha para que ela pudesse liberar calmamente o berço, sem sobressalto. 

A criança, que chorou só um pouquinho assim que nasceu, logo dormiu... Nasceu apressada, mas não era prematura. Ao ser colocada no berço, na falta da chupeta que ainda não tinha sido providenciada (como todo o resto, por sinal) foi logo colocando o dedinho na boca e dormiu placidamente, alheia a tudo, enquanto o pequeno círculo familiar ao seu redor continuava perplexo, tentando digerir a novidade. Mais tarde, essa criança soube que o dia em que ela nasceu tão apressadamente, tão antes do prazo previsto, era justamente o dia do aniversário de uma pessoa muito querida: a avó de sua mãe, que ela considerava uma das pessoas que mais amou nesta vida, com quem ela tinha vivido e crescido e que a havia deixado poucos anos antes... "uma homenagem a ela", dizia a mãe, "uma bela homenagem".

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Escrito e publicado por Christine Jz.