sexta-feira, 21 de abril de 2017

MANUELA

21/04/2017



           Querida Manuela,



Tão querida, tão esperada! Desde que você nasceu, não consigo conter a emoção, pensando na alegria que você veio trazer a esta família e no quanto você é amada. De alguma forma, o fato de você ser mais uma mulher na família acabou me trazendo muitas reflexões, por isso, hoje eu resolvi falar de mulheres. Você despertou em mim alguma coisa muito forte e, por isso, achei que precisava escrever esta mensagem.

Escrevo a você por ser a mais nova mulher desta família. Outras meninas nasceram antes de você e não sei bem por que eu não escrevi algo assim para elas. Talvez eu não estivesse pronta ou tudo isso ainda não estivesse claro para mim (a gente está sempre aprendendo, não é mesmo?). Mas elas podem tomar a mensagem também para elas, se assim o desejarem. No fundo, vale para qualquer mulher.

Na verdade, ao refletir a esse respeito, percebi que eu gostaria de ter escrito esta carta também para a minha mãe, quando ela era ainda uma menina. Vou começar contando um pouco da história dela, porque tem tudo a ver com o que eu quero te dizer.

A minha mãe era uma mulher maravilhosa. Sei que todo mundo diz isso da sua mãe, por mais defeitos que ela tenha. Bom, a minha não era perfeita, logicamente, mas ela foi para mim um grande exemplo de mulher. Segundo ela sempre me contava (e eu adorava ouvir) ela foi uma criança alegre, cheia de energia e também de grandes sonhos. Eu sempre pensava nela, ao ouvir os relatos da infância, como uma criança esperta, corada, feliz e, acima de tudo, livre. Ela era muito inteligente e queria estudar, ir para a faculdade, ser uma médica, ou talvez uma advogada.

Acho muito importante ressaltar aqui que não coloco os desejos e sonhos de minha mãe como um modelo para todas as mulheres. A mensagem aqui é a de que qualquer coisa que uma mulher escolha ser (dona de casa, costureira, cozinheira, médica, engenheira, etc.) será algo maravilhoso, desde que seja a escolha dela. E minha mãe tinha feito a sua escolha: cursar uma universidade. Mas, ao chegar aos 10 anos de idade, aquela criança alegre e cheia de planos para o futuro teve sua primeira grande decepção: seu pai não permitiu que ela continuasse os estudos como ela planejara, simplesmente pelo fato de SER MULHER.

Vou abrir aqui um parêntese, pois não quero que fique a imagem de que seu pai, o meu avô, era um homem insensível e cruel, que destruiu deliberadamente os sonhos de sua filha. Ele a amava muito, amava todos os seus filhos igualmente, mas ele estava imerso numa sociedade cujos valores ele procurava seguir e que ditavam regras rígidas do que era adequado para homens e para mulheres. Ele apenas seguiu o que acreditava ser o melhor para todos. É importante dizer também que tenho ótimas lembranças dele (morávamos na mesma casa), sempre como uma pessoa muito amorosa com a família e atenta ao bem estar de todos. Ele foi uma presença importante na minha infância e acredito que ele tenha mudado de ideia a respeito das decisões que tomou com os filhos à medida que o tempo foi passando, pois ele era uma das pessoas que mais demonstrava orgulho com meus progressos nos estudos. Além disso, as filhas mulheres que vieram depois, puderam estudar mais do que minha mãe.

Enfim, talvez a vida tenha ensinado tudo isso a ele um pouco tarde e ele pode até ter refletido a respeito do seu equívoco sem, no entanto, nunca mais ter tocado no assunto com minha mãe. Se o tivesse feito, talvez ela o tivesse perdoado e tivesse assim amenizado a mágoa que carregou por toda a vida. Teria sido bom para os dois. Por isso é que a gente tem que aproveitar sempre o que a vida nos ensina, aprender sempre, refletir sobre nossos atos e, enquanto ainda é tempo, procurar resolver as questões com as pessoas que amamos. Muitas coisas seriam resolvidas antes de se tornarem grandes e doloridas demais pra gente mexer. Isso vale sobretudo para mim também, pois sei que não é fácil, mas vou tentando.

Mas, voltando à história de minha mãe, sim, ela teve que encerrar seus estudos após a escola primária e ir para escola de corte e costura que era, segundo seu pai, uma atividade mais adequada para uma menina. Enquanto isso, o irmão mais velho, por ser homem, foi mandado para a escola privada, sendo preparado para a faculdade de medicina, pois o sonho de seu pai era ter um filho médico (mas esse irmão parou de estudar depois do colégio, porque não era isso que ele queria ou sonhava para a vida dele). Isso deve ter aumentado ainda mais a ferida. A pergunta que sempre me fiz a esse respeito foi: Por que o sonho de meu avô não poderia ser o de ter UMA FILHA médica? Por que ele não respeitou o sonho de cada um?

O resultado disso tudo foi que, embora minha mãe tenha se tornado uma costureira extremamente competente e caprichosa (acho que ela era capaz de fazer bem qualquer coisa que quisesse), ela nunca deu valor àquele trabalho, que para ela tinha a carga da decepção, pois não tinha sido uma escolha dela.

Aquela menina sonhadora foi se tornando, dia após dia, uma moça triste e frustrada e, mais tarde, uma mulher decepcionada e magoada. Vale dizer que ela nunca parou de aprender. Foi ela que me ensinou muitas “palavras difíceis” quando eu era criança, pois ela gostava de ler e sabia falar e escrever muito bem, apesar de ter sido obrigada a deixar tão cedo o ensino formal. Tudo que eu aprendia, eu gostava de ensinar a ela, pois ela tinha uma sede insaciável de aprender, sempre se interessava por algo novo que pudesse acrescentar conhecimento. Sinto falta de minha aluna mais interessada, para quem eu sempre ia contando tudo o que aprendia! Sempre achei que seria difícil viver sem isso depois de sua partida. Não me enganei. Até hoje, é difícil, sim.

Mesmo tendo tido que se desviar de seus sonhos, minha mãe acabou por construir uma linda família e foi a mãe mais dedicada e amorosa que alguém poderia ter tido. Ela deu origem a essa família que se ama tanto e que cresceu, gerou novos frutos, agregando mais e mais pessoas que vivem e convivem bem, apesar de todas as diferenças e da diversidade inerente a qualquer grupo de seres humanos. Mesmo assim, ela sempre deixava claro que a destruição de seus sonhos tinha deixado marcas profundas e que faltava algo na sua vida: a realização do antigo desejo de fazer algo que ela sabia (e eu também, tenho certeza) que ela teria feito muito bem.

Ela teve quatro filhas mulheres e é sobre isso que quero falar, porque o que me chama a atenção hoje é a maneira como ela lidou com essas mulheres. Posso dar aqui o meu testemunho do que sua história representou para mim e de como ela agiu comigo. Ela respeitou o jeito de cada uma, e embora eu não saiba o que isso pode ter representado para as outras três, eu posso e vou falar o que tudo isso representou para mim.

Talvez por ter tido seus desejos abafados, ela sempre me deixou ser eu mesma, apesar de eu ser, lá em meados do século passado, uma menina bastante diferente do que se esperava que fosse, naquela época, uma “menina” comportada e delicada. Tudo isso, a começar pelos brinquedos e brincadeiras “de menino” que eu apreciava e, mais tarde, já com meus 15 anos, por eu ainda preferir ir andar de bicicleta na rua a, por exemplo, pintar as unhas.

Minha mãe nunca precisou me dizer tudo isso com palavras, mas eu entendia pelas suas atitudes. Ela nunca me censurou por gostar de jogar bola na rua, brincar de carrinho, empinar pipa ou correr até ficar roxa. Ela mesma sempre me contava como ela adorava brincar de queimada, pular corda e de tudo que fosse brincadeira desse tipo. Ela também nunca comentou que minhas brincadeiras de trocar fralda de bebê, fazer comidinha e brincar de lojinha eram mais apropriadas do que as outras para uma menina. Eu gostava de tudo isso e brincava livremente do que eu gostava. Mesmo ouvindo de alguns parentes, vizinhos e amigos que eu parecia um moleque, minha mãe nunca endossou esses comentários ou me repreendeu por qualquer atitude nesse sentido.

Mais tarde, quando eu já era uma adolescente, minha mãe jamais me criticou por não parecer uma “mocinha”, por não ser “feminina” ou por não gostar de me maquiar, pintar as unhas ou usar salto alto e vestido. Também não se preocupava com o fato de eu não namorar, quando os outros julgavam que estava na hora de pensar nisso (eu só fui namorar aos 20 anos) e que eu estava “ficando pra titia”.

Sei hoje que eu só pude me transformar na adulta que sou porque minha mãe simplesmente me deixava ser eu mesma e eu me sentia muito segura de minhas escolhas, desde a mais tenra idade. Ela sempre ficou feliz vendo-me buscar o sonho de estudar e, mais tarde, de dividir tudo isso com o papel de mãe (que sempre foi também um desejo imenso!). Ela sempre foi minha maior incentivadora e eu tinha um prazer imenso em mostrar a ela meus progressos. Até hoje, ainda penso nela a cada vez que cumpro mais uma etapa, supero mais um obstáculo, avanço mais um pouco. Jamais cedi ao que a sociedade determinava que eu deveria ser e como eu deveria agir (e sou feliz assim até hoje) e sabia que tinha o total apoio dela. Isso não quer dizer que tive a competência/sorte/circunstâncias favoráveis para atingir tudo o que sonhei, mas o importante é que fui livre para fazê-lo. Continuo tentando.

O que posso dizer hoje a respeito disso tudo é que eu lamento muito, muito mesmo, que alguém não tenha aparecido na vida de minha mãe, ainda na sua infância (ou que sua própria mãe não tenha tido força para se contrapor às ideias de seu pai), para dizer a ela que seu sonho não deveria morrer tão cedo, apenas por ela ter nascido mulher. 

Portanto, depois de contar essa longa história, minha querida Manuela (a mais nova mulher desta família) e todas as minhas queridas meninas, desejo que vocês tenham sempre em mente que vocês jamais devem limitar seus sonhos, deixar-se moldar àquilo que a sociedade acha que é “apropriado para uma mulher”. Sejam o que vocês quiserem ser, nunca deixem que ninguém destrua seus sonhos. Se tiverem que obedecer a alguém, obedeçam aos seus pais. Se eles não concordarem com suas escolhas, conversem! Eles amam vocês mais do que tudo neste mundo, incondicionalmente, e eu tenho a certeza de que eles jamais repetiriam um equívoco de um pai da década de 1930, como aconteceu no caso de minha mãe. Eles vivem num mundo bastante diferente e, certamente, irão apoiá-las se vocês quiserem ser bombeiras, médicas, engenheiras, cientistas, guitarristas ou o que vocês sonharem ser.

Para terminar, para não deixar nenhuma dúvida, nada disto é uma crítica a qualquer mulher cujas escolhas sejam ou tenham sido diferentes das minhas. O que quero deixar claro é que, QUALQUER QUE SEJA A ESCOLHA, o importante é que tenhamos a liberdade de fazer a nossa própria escolha. Assim como eu sempre quis que as pessoas respeitassem as minhas escolhas, eu procuro respeitar as delas e acho a coisa mais natural do mundo que uma mulher se maquie ou use salto porque gosta e quer, embora eu não goste disso para mim. 

O importante, e é esta a mensagem que eu quero que fique no final de toda essa longa história, é: sejam livres para serem quem vocês quiserem ser! O mundo está cheio de mulheres maravilhosas, capazes de fazer o que querem e não apenas o que querem delas!

 
Amo todas vocês! Amo todas as minhas lindas mulheres! Amo a minha família linda!

Beijo enorme desta tia (de umas), tia-avó (de outras), uma tia chata, esquisita, diferente, emotiva, rabugenta, mas cheia de amor para dar pra vocês e pra toda a mulherada linda desta família (tem muito amor pros meninos também mas, insisto, neste texto eu precisava muito falar das mulheres!)

Obrigada, pequena Manuela, por ter me permitido essa reflexão. Obrigada por ter vindo ao mundo nos presentear com sua luz!

Chris

  Foto: Roseli J.V. (Manu com a roupinha que ela tricotou)


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Escrito e publicado por Christine Jz.