terça-feira, 11 de agosto de 2009

BELINHA DA NONA

Ela era um bebê quietinho, bonitinho, comportadinho, uma meiga criaturinha que não incomodava ninguém e logo ganhou do nosso tio esse apelido: Belinha da Nona. Ela era uma criança tão comportada, que se contrapunha tanto ao meu comportamento e à minha fama de furacão, que eu morria de ciúme dela. Ela chegou quando eu já tinha cinco anos e me lembro bem da sensação que sua chegada me causou. Não que meu posto de até então caçula fosse um paraíso. Nada na minha infância foi muito tranqüilo, porque eu vivia em ebulição. Quanto a ser caçula... Minha irmã mais velha era meiga, fofa, delicada e... chorona. Eu logo percebi que ser valente era uma forma de me destacar, de ser aceita: olha como ela é corajosa! Toma injeção e nem chora, vai ao dentista e não reclama! Eu era a fortona, a corajosa... Tudo fachada! Lá por dentro, eu morria de medo e queria colo, mas vesti a máscara da menina superpoderosa para conquistar o meu espaço. De qualquer forma, ser caçula tinha seu lado bom; seja como for, eu era o centro das atenções. Mas um dia percebi que algo ia mudar quando minha mãe anunciou sem rodeios: “ É, você vai perder seu troninho” . Lembro-me disso como se fosse hoje. Minha mãe estava agachada no chão no nosso quintal cheio de árvores e eu estava sentada na sua perna. Eu tinha cinco anos. Tentei processar aquilo, afinal, era enigmático demais para mim e minha mãe tinha mesmo falado de forma que eu não entendesse , como se estivesse pensando alto. Mas... bem, algumas conexões infantis se fizeram no meu cérebro e eu fui ligando tudo... Plim, plim... Minha mãe estava grávida, eu era a princesa, outra criança ia chegar e o colo seria dela. Em outras palavras, eu estava sentada no trono do qual seria muito em breve despojada! Comecei ali mesmo a não gostar daquele bebê intrometido.

Mais alguns meses se passaram e eu já tinha esquecido daquele episódio, até que um dia eu acordei e fui para a cozinha, como fazia todos os dias, para tomar meu café da manhã. Eu ainda não ia à escola (no meu tempo, a gente só ia à escola ao completar sete anos) e minha mãe sempre estava lá nessa hora, providenciando o almoço. Mas minha mãe não estava lá, como de costume. Procurei no quarto dela e nada! Já meio desesperada, perguntei à minha avó (nós morávamos com nossos avós) e ela me disse: “Sua mãe foi à maternidade buscar o nenê...” Ai! Aquele bebê de novo, roubando minha mãe! E o meu leite com Nescau? Quem é que ia fazer? Minha avó, é claro. Mas quem disse que eu queria? Eu queria a minha mãe. Mas a minha mãe estava ganhando o bebê e alguns dias depois ela chegou em casa com o novo pacotinho. Era uma menina lindinha, tranqüila... Cutchi, cutchi... E eu fiquei jogada às traças... É claro que não fiquei, mas era bem assim que eu me sentia. Todo mundo queria tirar foto dela, olhar pra ela, e eu já não tinha a menor graça. Quando meu pai pegou uma caixinha de papelão e colocou as fotos dela lá dentro, ele escreveu na tampa: “Fotos da ...”. E eu fui lá, na calada da tarde (porque à noite eu estava dormindo) e escrevi com minha letra cursiva torta de cinco anos, bem ao lado: “Bela porcaria, feias pra chuchu”. Assim, ficou lá registrado o meu terrível ciúme infantil. Ninguém ligou muito. Ninguém ficou bravo, ninguém achou graça... Eu não era mais a caçula...

Outro episódio que me marcou foi quando alguns meses mais tarde minha irmãzinha teve um problema e precisou ser internada no hospital. Minha mãe ficou lá com ela, é claro, e eu e minha irmã mais velha ficamos em casa com nossa avó. De novo eu me lembro de acordar, não encontrar minha mãe em casa como de costume e receber a notícia de que ela estava com o bebê. Mas eu queria porque queria ver minha mãe. Então minha tia me levou até o hospital, eu vi minha mãe e minha irmãzinha na caminha tomando soro com remédio. Achei que eu tinha ido lá resgatar minha mãe e que ela voltaria para casa comigo. Quando descobri que eu iria embora com minha tia e minha mãe ficaria lá, comecei a chorar. Muito! Lembro-me da cena: eu e minha tia no ponto de ônibus da Praça Buenos Aires. E eu chorando. Muito! Minha tia não sabia mais o que fazer. Acho que ela queria me esganar ou abrir um buraco para se enfiar. Não sei o que ela sentiu, mas sei que ela se lembra da cena tão bem quanto eu... Um dia desses, há bem pouco tempo ela me disse: "Você se lembra como você chorou naquele dia em que a gente foi visitar sua irmãzinha no hospital?" Nem tive coragem de perguntar se ela sabia porque eu chorava tanto... Ficou por isso mesmo.

O tempo foi passando e o ciúme ia me corroendo. Eu era terrível, irriquieta, levava bronca o tempo todo; não dava sossego pra ninguém. E a Belinha da nona continuava belinha. Chegou o dia de eu ir para a escola. Grande dia! Meu primeiro dia de aula, uniforme lindo, novinho, laço de fita branca no cabelo, engomada com capricho, sapato novo, engraxado e brilhante. Ah! O cheirinho de couro da mala nova, o estojo cheio de lápis de todas as cores, o caderno encapado pelo meu pai, com desenho na primeira página. Tudo perfeito! Até o momento em que minha mãe me avisou que eu iria para escola com a minha vizinha... Ela não podia me levar. Adivinha por quê? Porque tinha que cuidar do bebê (já nem tão bebê assim àquela altura do campeonato). Ai, sempre esse bebê intrometido! E lá fui eu, primeiro dia de aula, levada pelas mãos da vizinha que tinha um filho da minha idade na mesma escola. E justamente naquele primeiro dia, em que eu queria que minha mãe me visse orgulhosa entrando na escola, com minha mala e meu uniforme impecáveis. Mas ela ficou em casa com o bebê. E eu não podia chorar e nem mostrar qualquer fraqueza porque eu era a valentona. Minha irmã mais velha chorava porque não queria ficar na escola, chorava para tomar injeção, mas eu não! Eu ia para a escola sem chorar. Na verdade, eu não queria chorar. Eu queria muito ir à escola. Mas eu queria que minha mãe tivesse presenciado isso, pelo menos no primeiro dia. E por isso, sim, eu tinha vontade de chorar. Durante algum tempo eu tentei fazer minha mãe me levar à escola, uma vez que fosse. Lembro-me de um dia fingir que estava com dor de barriga e de ter pedido que ela fosse comigo para falar com a professora. Mas não deu certo. Minha mãe, muito prática, escreveu um bilhete e mandou que eu o entregasse à professora. Eu nem entreguei, porque não estava com dor de barriga mesmo. Bem, com minha avó isso dava certo. Quando eu dizia que estava com dor de barriga, ela ia até o quintal, pegava umas folhinhas de hortelã e me fazia um chá. Hoje eu sei que ela entendia o que eu queria e fazia para me agradar. Eu adorava aquilo. Mas com minha mãe não funcionou... Até que resolvi desistir. Já no segundo ano eu sabia o caminho da escola e podia até ir sozinha (algumas vezes me atrevi a voltar sozinha para casa). A escola ficava a alguns quarteirões de casa eu já ia e voltava com minha irmã mais velha. Minha mãe nunca precisou me levar ou me buscar na escola. Porque eu não chorava...

Com o passar do tempo, eu continuava a ser a terrível filha do meio, entre duas crianças calminhas e comportadinhas. A Belinha, sempre belinha. Aprontou muito pouco na sua infância comportada, mas quando o fez, realmente caprichou. Um belo sábado, estávamos na cozinha (eu, minha mãe, minha irmã mais velha e meu pai) e a Belinha estava na sala, quietinha. Ela nunca aprontava e ninguém se preocupava em olhar o que ela estava fazendo. Mas naquele dia, ela tinha um lápis na mão e descobriu que atrás do encosto das cadeiras da sala de jantar o plástico esticado podia ser furado, fazendo um barulhinho engraçado. Ela tinha cinco anos, mas sabia que o que estava fazendo não seria aprovado pelos mais velhos. Como era uma criança muito inteligente e criativa, bolou uma estratégia para a traquinagem da sua vida: trancou todo mundo na cozinha para poder trabalhar sossegada. E assim, furou todas as cadeiras! Infelizmente, para nós que ficamos trancados, seu raciocínio estava muito à frente da sua capacidade motora, ou seja, de alguma forma ela conseguiu trancar a porta, mas depois, não conseguiu abrir. Entre a sala em que ela estava e os prisioneiros que ela fez só existia um vitrô (que obviamente ela não alcançava) e que nos dava muito pouca visão. Ela não conseguia tirar a chave para nos entregar, não conseguia virá-la para abrir a porta e ficou muda e assustada em um canto, desconfiada de que tinha feito uma terrível, como direi, caquinha! E nós todos, trancados na cozinha... Eu tinha uns dez anos e, na verdade, achava aquilo tudo uma aventura divertida. Depois de algum tempo, minha mãe teve a idéia que garantiria o nosso resgate: foi até o muro do quintal, conseguiu chamar a vizinha e pediu que ela telefonasse para minha avó, que nessa época morava a alguns quarteirões de casa. Felizmente, meus avós tinham uma chave reserva e meu avô veio até nossa casa para nos libertar. Não me lembro, mas acho que minha pequena irmãzinha não levou nem mesmo uma bronca. E nem precisava, porque depois disso, ela voltou a ser a criança exemplar que gostava de ler seus livrinhos, desenhar, brincar com suas bonequinhas, sempre sem perturbar ninguém.

Hoje a Belinha da Nona cresceu e arrisco dizer que se tornou uma das mulheres mais fortes que já conheci. Uma irmã carinhosa e presente, que talvez seja a mais forte das quatro irmãs... a Belinha da Nona. Uma mulher que cuida da casa, dos filhos, do marido e da sua arte, com muita competência. Embora minhas outras irmãs também sejam muito talentosas, ela parece ter sido a que mais herdou de nosso pai a veia artística, aliada à paciência oriental e ao capricho extremo com os mínimos detalhes. É também a que mais cuida de manter as tradições da família, a que se lembra de todas as datas, a que mais se empenha em agregar sempre e mais as quatro irmãs e suas famílias. É claro que o ciúme passou. Ele foi substituído pelo respeito que sinto por ela. Hoje ela é uma grande amiga, uma irmã muito amada, assim como minhas duas outras irmãs. É parte da família da qual me orgulho muito de fazer parte, pela união, pelo respeito mútuo e pelo amor. Uma família pela qual agradeço todos os dias. Bem, minhas irmãs sabem o quanto as amo e respeito e o quanto elas são importantes para mim, mas não custa deixar mais uma vez aqui registrado esse sentimento! Valeu, mosqueteiras! J

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Escrito e publicado por Christine Jz.

5 comentários:

  1. A Belinha da nona ficou emocionada...

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  2. É isso aí. Somos as mosqueteiras. Acho que nossos pais souberam muito bem nos transmitir muito amor e espírito de união. Também me orgulho muito de pertencer a essa família e agradeço a Deus todos os dias por nos entendermos e nos querermos tão bem!!!Adoro ler o que você escreve, pois revivo nossa infância maravilhosa. Continue a escrever.....
    Beijos de sua irmã mais velha hehehe

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  3. Ah, como eu lembro desse dia... eu tinha 5 anos. Lembro que o lápis estava em cima da mesa, tão bem apontado! E antes de pegar o lápis, eu reparei na posição que ele estava, pra ninguém perceber que eu tinha mexido nele.
    Depois que a família foi libertada, ninguém viu que as cadeiras estavam furadas. Minha mãe só soube que tinha sido eu uns 10 anos depois, quando eu contei a história pra uma amiga, na presença dela. Mas acho que depois desse dia, nenhuma porta ficou com a chave dando sopa... bons tempos! Amo demais essas irmãs!!

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  4. Ah, como ninguém viu naquela hora que as cadeiras estavam furadas (a única preocupação era comigo, eu estava sozinha, podia ter me machucado, sei lá, e o lápis não tinha saído do lugar!) nunca desconfiaram de mim. A principal suspeita sempre foi... adivinha quem?
    "Só pode ter sido a Chris, o furacão..."

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  5. Este comentário foi removido pelo autor.

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